Etnograficamente, a população negra está dividida em oito grandes linhagens assim distribuída: 1) os nilotas que são os mais bem conhecidos devido aos estudos realizados sobre o Egito antigo e que habitam a estreita faixa do alto vale do Rio Nilo; 2) os hamitas que habitam o assim o assim chamado “corno” ou “chifre” da África; 3) os nilota-hamitas que habitam os entornos dos grandes lagos da África central; 4) os sudaneses que ocupam a extensa faixa de terras habitáveis entre o Saara e o Golfo da Guiné e mais além, adentrando-se pelo continente em direção ao oriente, pelo lado norte da grande floresta equatorial; 5) os bacas, impropriamente denominados de pigmeus, que habitam a grande floresta tropical; 6) os bantos que se constituem na de maior número de integrantes e ocupam quase toda a região abaixo desta Floresta, desde o Atlântico até o Índico; 7) os koikoi, conhecidos pelos europeus de hotentotes, que ocupavam uma área muito grande no sul do continente, mas hoje estão reduzidos a uma estreita baixa entre o Atlântico e o deserto do Calahari, na Namíbia, e os san, mais conhecidos como bosquímanos, cuja história é semelhante à dos anteriores e que se deslocavam nas bordas do mesmo deserto, pelo lado oriental, entre o sul de Angola e o norte da África do Sul.
No contexto da arquitetura brasileira só interessam os bantos e os sudaneses porque foram eles que forneceram os imigrantes nosso país. Dentre eles, os bantos foram os mais importantes tanto pelo fato de serem mais numerosos como por se originarem das duas regiões mais importantes de emigração: a “costa” (Angola) e a “contra-costa” (Moçambique). Dentre eles, porém, não se deve excluir os que eram provenientes de Camarões, Gabão e Congo, como ficou demonstrado nos levantamentos por nós realizados.
OS BANTOS
A tipologia arquitetônica mais comum entre os bantos era a assim chamada “cubata (construção) de cone sobre cilindro” embora houvessem muitas variedades tanto desta como de outras formas construtivas. As principais características destas construções são: a) a existência de uma só porta “protegida” por um fogo; b) a ausência de janelas; c) uma cobertura vegetal; d) edificação sobre uma plataforma de altura variável conforme a cultura; e) edificações monofuncionais; f) paredes de uma variada gama de taipas ou de palha e g) moradias formadas pela composição diversas edificações independentes.
A tipologia denominada na África de “cubata de mocambo” (mocambo = cumeeira, ou seja, construção de duas águas) era pouco comum, e endêmica apenas na costa setentrional de Angola e em toda a ilha de Madagascar.
Uma das características mais específicas da arquitetura africana é o assentamento familiar em forma de kraal. Não foi encontrada uma palavra que traduzisse este conceito para o português. Um kraal é constituído por um terreno cercado que contém as diversas “cubatas”, locais de trabalho, a horta, as árvores frutíferas e de sombra (moradas de orixás), espaços cerimoniais, cercados de animais, etc. Por “cubata” deve ser entendido uma construção que abriga uma só atividade, como uma cozinha, um dormitório, uma sala de trabalho, um celeiro, um sanitário. Como cada “cubata” abrigava apenas uma função, um kraal era formado por diversas construções. As principais características de um kraal são: a) cerca externa delimitando o terreno; b) existência de diversas “cubatas”; c) existência de uma única entrada; d) a construção principal é do “chefe”; e) uma significativa variedade de atividade exercidas ao ar livre; f) existência de locais de plantações e de árvores (frutíferas ou de sombra) e, por vezes, g) a existência de curral para animais.
A conjunção de diversos kraals formava uma aldeia cujo nome mais comum é a de “quilombo” que é a palavra quimbundo designativa de vila. Portanto, não tem fundamentos as conotações pejorativas que a palavra acabou por receber no Brasil. Aqui a palavra “quilombo” deve ser entendida apenas como “aldeia de negros”.
A grande variedade de culturas da linhagem banto deu origem a uma igual diversidade de formas urbanas dentre as quais devem ser destacados os quilombos devido a sua forma de adaptação ao Brasil. Via de regra, se tratavam de justaposições de kraals separados por uma via principal decorrente da divisão clânica interna da tribo.
Outra forma não menos importante embora mais rara é conhecida como “sanzala”. Este tipo de aldeia é formado por uma rua central (aberta ou fechada nas extremidades) em cujos lados se agrupam em forma da fita, as numerosas “cubatas” que a integram. A ordenação das “cubatas” justapostas em fita seguia regras fixas de separação das diversas clãs.
Semelhante ao modo como se formaram os quilombos, as cidades bantas também resultaram da justaposição destes aldeamentos. Como a sociedade africana se caracterizava pela forte coesão tribal, era comum que as cidades se organizassem a partir de setores onde cada qual é constituído pelos habitantes de uma só tribo. Em outros termos, isso se materializava na forma de assentamentos cortados por poucas, mas grandes e largas avenidas, mais ou menos paralelas e ortogonais entre si, formando o que poderíamos qualificar de super-quarteirões.
Normalmente, cada super-quarteirão era dividido em quarteirões que podiam ser separados entre si ou por ruas ou por simples muros, por vezes, de considerável altura. Cada quarteirão se caracterizava por apresentar um limite murado externo e o acesso ao mesmo se dava por uma só entrada. Cada quarteirão se identificava pela tribo que o habitava, o que significava que em cada um deles se falava uma língua ou um dialeto que lhe era peculiar. Normalmente, cada quarteirão tinha uma rua principal que ligava a entrada até a praça central onde ficavam os edifícios mais importantes da comunidade. Dela e da rua principal derivavam rua pequenas que se bifurcavam em caminhos e estes desembocavam em vielas. Este traçado era bastante complexo e requeria algum conhecimento prévio para o deslocamento desenvolto através do mesmo. O casario, por sua vez, era formado pela conjugação de diversas construções ordenadas em torno de um pátio central e contornado por um cercado leve cujo modo de organização refletia claramente a estrutura do kraal rural com a diferença de ele era mais compacto o que, quase sempre, impedia a existência de uma horta, mas dificilmente deixava de existir alguma vegetação de porte seja por razões funcionais (o fornecimento de sobra e medicamentos) ou religiosas (habitação de orixás). Em regiões desérticas, evidentemente, a presença de árvores eram pouco significativa.
OS SUDANESES
Os sudaneses ocupam uma relativamente estreita faixa de terra entre o Saara e o Golfo da Guiné se comparada ao seu comprimento que se estendia do Atlântico às proximidades da região dos grandes lagos. Desde épocas pré-cristãs vem tendo contatos com as populações da África Branca dos quais sofreram algumas influências em razão das quais são, por vezes, e, equivocadamente, apresentados como sendo socialmente mais “evoluídos”. Suas tipologias arquitetônicas eram mais variadas devido à variedade dos ecossistemas em que habitam. Quanto mais próximos do Saara, nas regiões semi-desérticas, seus kraals eram mais compactos e fechados por muros altos cuja finalidade era proteger as construções dos ventos muito quentes do deserto. Este tipo de construção é denominado de “casas-castelo”.
Na região intermediária (de savanas) o clima é pouco mais ameno o que permite que os partidos fossem menos compacto e que as paredes de contorno dos kraals, menos elevadas. Comumente estas formas de kraals são denominadas de “casas-pátio”.
Na faixa litorânea, superúmida e de densas florestas, os kraals eram mais livres e abertos. Tipologicamente, havia uma grande variedade de formas – como, ademais, no resto da África – mas onde a porta colocada à direita da entrada do “mocambo” era largamente hegemônica ao contrário dos bantos, em que ela era, via de regra, colocada à esquerda. Como esta região apresentava uma costa provida de mangues e continha muitas lagunas e lagos, esta população aprendeu a construir suas vivendas em palafitas, sobre a água, pelo fato da temperatura ambiente ser mais baixa já que a energia solar era, parcialmente, convertida em vapor de água. Isso teve por conseqüência que a população destes aldeamentos pouco pisava em solo firme.
O nome mais comum dado aos aldeamentos sudaneses era “tabanca” que, em geral, eram mais complexas que as dos bantos. Em primeiro lugar, por serem mais antigos o que permitiu uma maior experimentação em sua organização. Ao contrário dos bantos onde as práticas religiosas assumiram um caráter mais doméstico, os sudaneses cultivavam “bosques sagrados” (no Brasil chamados de “terreiros”) periféricos ao aldeamento. Uma maior experiência na organização estatal fez com que as “tabancas” apresentassem uma organização interna mais próxima ao conceito de “zoneamento de usos” do urbanismo europeu. Em geral, a separação entre os diversos kraals era antes espacial do que físico de modo que a maior ou menor aproximação entre as “cubata” permitia identificar a individualidade de cada kraal.
O mesmo fenômeno também aconteceu com as cidades sudanesas. Também aí as cidades eram formadas pela justaposição de “tabancas” cuja formatação era facilmente perceptível por simples percepção visual. Também aqui, a estrutura tribal era o principal fator da organização interna das cidades. As figuras seguintes são da região semi-desértica, intencionalmente escolhidas por não apresentar vegetação e, assim, serem de mais fácil leitura visual. De forma ainda mais visível, estas cidades também eram divididas em grandes quarteirões que também podiam ser subdivididos onde cada fração tinham poucos acessos. Na maior parte das vezes, ele era reduzido a um único.
A ARQUITETURA AFRICANA NO BRASIL
Com a emigração forçadas para a América, os diversos povos perderam a sua identidade tribal (ganguela, quimbundo, etc.) para se transformaram em genéricos “negros” ao pisar em solo americano. O contato com uma sociedade de características completamente diversos das da África, fez com que as novas organizações sociais afro-americanas e afro-brasileiras, em particular, tivessem de se reordenar de modo bastante diferente das tradicionais. Adquiriram, portanto, características peculiares que podem ser especificadas – dentro da perspectiva dos objetivos da arquitetura – com as seguintes características: a) uma generalizada homogeneização por via da destribalização; b) a família poligâmica foi substituída - pelo menos, oficialmente – pela monogâmica; c) as diversas culturas regionais africanas tiveram de se readaptar a um meio multicultural; d) a manutenção de fatores culturais africanos só foi possível através de adaptações a novas condições interativas dos diversos grupos formadores; e) devido às condições em que se processou esta imigração, a religião acabou por se consolidar como principal suporte da africanidade.
A HABITAÇÃO
Traduzindo esta terminologia para a arquitetura, esta imigração teve por principal conseqüência a simplificação e diminuição das tipologias arquitetônicas. A forma hegemônica entre os bantos de construção de “cone-sobre-cilindro” praticamente desapareceu e foi substituída pela do “mocambo”. A extraordinária variedade de técnicas construtivas em solo africano sofreu um duplo processo de simplificação dos procedimentos africanos por via de sua maior eficiência sob o ponto de vista ecológico e de um procedimento de dupla-troca para com as culturas não-africanas (do colonizador e do ameríndio). Por outro lado, as construções africanas preponderantemente monofuncionais deram lugar as plurifuncionais como resistência à multifuncionalidade das construções do colonizador. Se as construções na África tinham, na maior parte das vezes, uma só porta como abertura, aqui as janelas – ainda que pequenas – mostram hoje terem sido amplamente aceitas.
Em alguns aspectos, no entanto, os africanos conseguiram manter os seus costumes que só ao longo dos séculos acabaram por encolher em seu significado. Referimo-nos especialmente, às atividades ao ar livre. Os viajantes do início do século XIX se deliciavam em representar as múltiplas atividades exercidas pelos negros nas ruas e nas praças de nossas cidades. Para eles, isso não passava de exotismos de um país tropical: certamente tinham dificuldade em entender que isso era um modo de vida africano que estava continuando a se perpetuar no país.
As tipologias arquitetônicas afro-brasileiras podem ser divididas nas seguintes categorias: a) casas isoladas; b) senzalas; c) enxovias e d) quilombos.
Já foi visto que as construções do tipo cone-sobre-cilindro virtualmente deixaram de existir sendo raras vezes utilizados mais por seu valor simbólico em construções específicas para sublinhar a africanidade de sua função como barracas de venda de acarajés e assemelhados. De forma absolutamente hegemônica, se impuseram as casa de “mocambos”, ou seja, de duas águas, o que não deve ser confundido com um tipo especial de construções de palha da periferia de Recife que recebem este qualificativo, embora estas tenham sido – corretamente – qualificadas como tais, mas, contrariamente ao que pensava Gilberto Freyre, elas muito pouco tem a ver com ancestralidade européia.
Mas esta adaptação não foi uma via de mão única posto que a arquitetura do colonizador também passou a sofrer influências das formas africanas de construir como foi o caso típico da grande divulgação das diversas formas de taipa leves nas construções dos colonizadores, uma vez que em Portugal as construções mais comuns eram de pedra e de taipa-de-pilão de origem norte-africana, dos berberes.
O KRAAL
Ao que nos consta, não há na literatura técnica brasileira referência ao conceito africano do kraal. Dentre os viajantes do século XIX, somente Robert Walsh o cita uma única vez e, assim mesmo, equivocadamente. Isso levou a que estudos sobre os mesmos tivessem tido pouco desenvolvimento. No entanto, em estudo recente (de 1998), Sheila da Castro Faria os descreveu partindo de inventários da época de transição entre os períodos colonial e imperial. Segundo esta autora, os sítios fluminenses eram fechados por cercados de limoeiros e continham diversas construções que formavam a residência, além de conter plantações e árvores frutíferas, o vem a se constituir numa perfeita descrição de um kraal africano.
Observações empíricas demonstram que os kraals ainda hoje se conservam em plena atividade, tanto em zonas rurais como nas cidades. O desconhecimento do conceito faz com que o kraal venha sendo confundido com “quilombo urbano” como é o caso do sítio da Família Silva, em Petrópolis, Porto Alegre, que se constitui no primeiro a ser reconhecido como tal no país após uma dura luta contra os interesses dos grandes empreendedores imobiliários.
A SENZALA
A forma mais estuda dentre as tipologias arquitetônicas tem sido a senzala, designativo que evoluiu da palavra africana “sanzala”. Embora relativamente rara na África (endêmica em algumas regiões do Gabão e de Camarões), ela encontrou solo fértil no Brasil e deu origem a muitas cidades brasileiras. Como exemplos podemos citar Serinhaém a Porto Calvo.
A fama das senzalas derivou do fato de ter sido empregada principalmente como habitação da mão-de-obra de engenhos e fazendas. Embora haja documentação da existência de senzalas de duas alas separadas por uma rua, como na África, a absoluta maioria das mesmas se reduziu a uma só, alegadamente, para favorecer o controle dos cativos. A mais antiga documentação sobre sua existência provém de fontes holandesas, mas é provável que elas já existissem antes do domínio batavo no nordeste.
Com a abolição da escravatura, as senzalas perderam sua função e somente as construções mais resistentes se mantiveram até nossos dias. Como a maioria era de consistência precária, de taipa e cobertas de palha, elas desapareceram. Por isso é-se forçado a recorrer a documentos históricos para saber de suas características no passado. E esta demonstra que as mesmas desempenhavam um papel muito importante na configuração plástica dos engenhos.
AS ENXOVIAS
A palavra “enxovia” é de origem árabe e significa “prisão”, “cárcere”. Portanto, não é adequado para definir as moradias dos escravos domésticos. Mas é o termo que para tanto tem sido empregado. É provável que as enxovias existissem desde o início do sistema escravocrata, mas Roger Bastide pensava que elas teriam surgido durante o ciclo do ouro como conseqüência de um trabalho mais próximo entre escravizadores e escravizados.
OS QUILOMBOS
Os aldeamentos africanos foram muito variados em suas formas e dimensões. A denominação mais comum que receberam no Brasil foi a do termo quimbundo “quilombo” que nada mais queria dizer além de “aldeia”. Conotações como “covil de negros fugidos” etc. foram inventadas pelos escravocratas e que nada tem a ver com a origem africana do termo.
Um cuidado que deve ser tomado em relação ao termo é o de que o famoso “Quilombo dos Palmares” não era, de fato, um quilombo, mas uma federação de quilombos como, na época, era corrente região hoje ocupada pela Nigéria. Como pode ser visto no mapa reproduzido a seguir, Palmares eram uma federação de onze quilombos localizados na Zona da Mata, entre Alagoas e Pernambuco.
Ao longo da história, a formação de quilombos tem sido um processo continuado e incessante. Espera-se que a obrigatoriedade da elaboração de laudos antropológicos necessários para a concessão de títulos de propriedade aos “remanescentes de quilombos” venha a trazer novos conhecimentos sobre a dinâmica de sua formação e desenvolvimento. É evidente que a real extensão dos “quilombos urbanos” ultrapassa a capacidade financeira do Estado em proceder às desapropriações impostos pela constituição. Provavelmente, só na cidade de Salvador da Bahia cerca de três quartas partes da área urbana teria ser desapropriada para tal finalidade se a lei fosse respeitada.
FONTE: GUNTER WEIMER, ARQUITETURA POPULAR BRASILEIRA.