quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CULTURA INDÍGENA NO BRASIL - AS ALDEIAS


Frente à grande diversidade das culturas indígenas no Brasil, seria impossível estudar cada uma em particular, devido também (e principalmente) à precariedade dos dados disponíveis. Além do mais, a existência de uma tradição construtiva não significa necessariamente que se possa apresentar uma única solução arquitetônica. Com o passar do tempo, as formas arquétipas deram origem a uma série de variantes, o que faz com que o número das soluções se potencialize. Por isso nos limitaremos a algumas das tipologias já estudadas e que poderão servir de ilustração da grande variedade de tipologias existentes ou extintas.


A CASA-ALDEIA [HABITAÇÃO UNITÁRIA]

A forma mais simples de organização da aldeia é da casa unitária, em que toda a tribo vive num só teto. É o caso dos tucanos, que habitam a fronteira entre Brasil e Colômbia. Essa casa tem um formato retangular, com um dos lados menores fechado por uma semicircunferência. A cobertura é de duas águas, que chegam quase até o solo, permitindo a presença de paredes da altura de uma pessoa. A casa tem duas portas, uma na fachada principal, que da para o rio, e a outra nos fundos, dando para as plantações. O interior é dividido por biombos de folhas de palmeira trançadas, formando nichos. Cada nicho é ocupado por uma família nuclear, e distribuído segundo o status que a família ocupa na comunidade. A parte central da construção é dividida em duas partes fundamentais: a da frente, pintada de amarela, é reservada para os homens, e a de trás, pintada de vermelho, é própria das mulheres.




Outro exemplo de casa unitária é a dos índios pano, habitantes do Alto Solimões. A casa é implantada no alto de uma colina, e ao seu redor, em círculos concêntricos, situam-se o pátio externo, as roças e os limites da floresta. Junto à entrada principal existem dois longos bancos paralelos que servem para os homens e meninos fazerem suas refeições, assim como para as assembléias cerimônias de xamanismo. Depois dos bancos há um corredor espaçoso onde as mulheres fazem sua refeição. Também é o loval onde ocorrem os ritos cerimoniais. Em ambos os lados desse corredor/ sala há nichos onde são encontrados os pertences de cada família nuclear, como redes, fogão, cerâmicas e apetrechos de cozinha.

Os Marubos também apresentam uma habitação unitária, porém algumas funções complementares são transferidas para construções menores que circundam a casagrande. 




Uma forma um pouco mais complexa é apresentada pela casa dos Yanomâmis, habitantes da fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Também constroem uma casa unitária (Shabono), que abriga de 50 até quase 200 habitantes. A casa é queimada após dois anos de uso, por causa do apodrecimento das folhas ou o acumulo de insetos, assim como por motivos de ordem social, como os constantes reagrupamentos das comunidades que estão sujeitas a constantes agregações e separações de unidades familiares.








AS ALDEIAS COM HABITAÇÕES MÚLTIPLAS


A forma mais comum de assentamentos indígenas são as aldeias formadas por varias construções. A cultura mais estudada que adotou esse tipo de solução é a tupiguarani. Originária do médio Amazonas, essa cultura tem representantes desde o Alto-Solimões até as bacias do Paraguai e do Uruguai (onde são conhecidos como guaranis). O que tornou essa cultura a mais conhecida foi a crença no Mirá, paraíso terrestre tido como situado nas terras do sol nascente. Em conseqüência de vários movimentos messiânicos que surgiam “naturalmente” quando a tribo se tornava muito grande, uma parte da população iniciava peregrinação ruma ao leste que terminava com a chegada ao oceano. Não podendo mais continuar com a caminhada, acabavam por ocupar toda a costa, do Oiapoque ao Chuí, o que levou os europeus a acreditar que era a única cultura existente no país na época da chegada.

Aldeias semelhantes com as tupi-garani podem hoje ser encontradas na Amazônia e em pouco divergem de uma forma comum que é a existência de quatro construções, ortogonais entre si e ordenadas de modo que formem uma grande praça quadrada. Cada uma dessas casas é chamada de oguassu, maioca ou maloca (casa grande) e é dividida internamente pela estrutura do telhado em espaços quadrados de 6 metros por 6, onde mora em cada uma delas uma família celular. Esse espaço é denominado oca (tupi) ou oga (guarani). O tamanho de cada casa depende do tamanho da tribo, podendo chegar a mais de 200 metros de comprimento. O mais comum, no entanto, é que não passem de 150 metros de comprimento por cerca de 12 de largura. A forma de vida desses indígenas era dominantemente sedentária. Se uma casa ficava velha, era queimada e outra de igual formato era construída em seu lugar. Em razão disso, a forma de habitar era muito controlada, respeitando-se ainda a vivência dos demais habitantes da casa.




A casa era o espaço preferencial das mulheres. Ali elas exerciam suas atividades domésticas e no “corredor” central, junto aos pilares que sustentam a cumeeira, preparavam a comida. Ao fim desse corredor havia uma porta em cada extremidade da maloca, e no meio da casa, no lado que dava para o pátio, havia uma terceira. Essas portas eram baixas, obrigando cada indivíduo a se abaixar em sinal de respeito.

A praça central, delimitada por quatro casas-grandes, representava a unidade indissolúvel da tribo, e lá eram realizadas as cerimônias tribais. Em seu centro se reuniam os homens para decidir as atividades que seriam realizadas no dia, como a pesca e a caça, e por vezes abrir uma clareira, que servia para a prática da agricultura (de exclusiva competência feminina). As atividades exercidas pelos integrantes de cada sexo eram tabus, o que fazia com que uma parte jamais interferisse na outra.

Outras tribos lançavam mão de um número ainda maior de construções. Como o numero de integrantes de uma tribo era mais ou menos constante (entre 300 e 700 indivíduos, em condições normais), o número de casa era inversamente proporcional ao seu tamanho.

A construção de aldeias com um grande número de casas é uma das características do grupo Jê que pode ser exemplificada com a dos Xavantes. Esses índios habitavam aldeias formadas por duas a três dezenas de casas que se dispunham de forma semicircular, em torno de um pátio cerimonial denominado warã. A distância entre duas casas era de alguns metros, salvo a , a casa dos jovens em fase de iniciação, localizada numa das extremidades da “ferradura”, que mantinha uma distância dupla ou tripla das demais casas. As casas eram implantadas em terreno de chão batido, que também era o acabamento do warã. Entre essas duas faixas havia um gramado, cortado por trilhas que ligavam cada casa ao pátio cerimonial. Deste saía o caminho principal, para o rio, que ficava a certa distância. Esse caminho era muito utilizado tanto pelos homens quanto pelas mulheres, dada a importância do rio na vida da tribo. Pelo lado externo da “ferradura” havia grande número de caminhos que levavam as roças.




A casa xavante é de planta circular, com um diâmetro de cerca de 5 a 6 metros, e sua forma é de uma cúpula levemente apontada. Dada a complexidade de suas relações socioculturais, a vida dessas tribos exigia um alto grau de mobilidade, o que acarretava constantes deslocamentos. Por conseqüência, as casas tinham uma utilização curta, edificadas por meio de uma técnica muito simples, quase descuidada. Nesses deslocamentos, que podiam envolver toda ou apenas parte da tribo, instalavam-se acampamentos temporários que, por seu uso ainda mais breve, eram de uma feitura extremamente simples, embora conservassem a forma da aldeia-base para a qual toda a tribo retornava após as peregrinações. Esses procedimentos demonstram que a base de sustentação do grupo era a recoleta, cargo das mulheres, o que não permitia um grande desenvolvimento da agricultura. A caça (realizada pelos homens) era altamente valorizada, ao contrário da pesca, praticada esporadicamente.



Os índios Karajás, do mesmo grupo lingüístico e ocupantes das margens do rio Araguaia, desenvolveram uma forma de aldeia ainda mais complexa. Como o rio esta sujeito a uma época de cheias e outra de estiagem, no período das chuvas construíam casas de uma sólida estrutura, constituídas por 3 arcos paralelos, cada um formado por um par de varas fincadas no chão e vergadas para que possam ser amarradas, em suas extremidades, na cumeeira.



Essa casa era construída em duas filas, paralelas ao rio, e a uma distância mínima de 30 metros das barrancas do rio. Os primeiros 10 metros junto ao rio eram sombreados por grandes mangueiras, e o restante era usado para descanso e convívio no fim da tarde. As casas, cujo número podia exceder a meia centena, eram separadas por uma praça central de cerca de 5 metros de largura; o comprimento, que correspondia ao da aldeia, podia ultrapassar a distância de 600 metros. Apesar dessa centralização, cada casa tinha sua abertura voltada para o rio, que permanecia como centro referencial da vida da aldeia. Isso significa que, apesar da semelhança formal, essa “praça” não assumia função semelhante à de nossas ruas urbanas. A construção de casas era uma função exclusivamente masculina, muito embora a “propriedade” das casas fosse feminina e a ordenação delas na aldeia obedecida. Á semelhança dos Xavantes, cada casa era habitada por uma família extensa, formada por algumas poucas famílias nucleares.



Por suas dimensões continentais, o Brasil contém uma grande diversidade de ecossistemas, o que resultou no aparecimento de uma grande variedade de soluções arquitetônicas para a moradia. Uma das mais interessantes foi a das casas subterrâneas e semi-subterrâneas, espalhadas por toda a América. No Brasil foram construídas nas regiões elevadas da Mata Atlântica, entre o Sul de Minas Gerais e a região serrana do Rio Grande do Sul.

No extremo sul do país, nas campinas pampeanas, os índios gaicurus desenvolveram uma técnica de surpreendente atualidade para a construção de suas casas, chamadas de toldos. Em se tratando de uma cultura caçadora, os constantes deslocamentos se impunham como forma de sobrevivência. Temperaturas muito variadas entre o verão e o inverno levaram-nos a inventar uma forma de moradia composta de painéis desmontáveis. Eram três paredes e um telhado que sobressaía na face que ficava aberta. Dessa forma, cada toldo formava uma espécie de nicho que era habitado por uma unidade familiar. A montagem desses toldos em fita permitia a economia de painéis. Originalmente, esses painéis eram compostos de um quadro de madeira vedado com um trançado de palha. Com a introdução de animais de grande porte pelos europeus, a palha foi substituída pelo couro. Essas casas serviam apenas para o descanso e para o abrigo das intempéries. Conforme a temperatura, a abertura era direcionada a favor ou contra o vento. No rigor do inverno, os toldos eram voltados uns contra os outros, de modo que os painéis do telhado formavam duas águas. Sob as saliências do telhado, formava-se um corredor que dava acesso às diferentes unidades familiares. As extremidades desse corredor eram vedadas por portas de couro, criando um microclima interno com uma temperatura mais elevada.

Todas essas tipologias têm como característica a evolução autóctone, ou seja, sem interferência de outras culturas. Uma das poucas exceções é a das aldeias xinguanas, nas quais se verifica um cruzamento de várias culturas e peculiaridades de diversos grupos lingüísticos que foram adotados por tribos de origens diversas. Suas casas são semelhantes às dos tupis, porém as extremidades são fechadas por semicúpulas construídas à maneira dos Jês. Nessas extremidades estendem suas redes e ali preparam suas refeições. Na parte central da casa fica um jirau, onde são armazenados os mantimentos e outros pertences, e o lugar de trabalho é dividido segundo o sexo: os homens ficam com o espaço junto à porta que dá para a praça, e as mulheres, do lado oposto.

O número de casas varia de tribo para tribo, porém todas estão dispostas de modo que cerquem a praça. Em meio a ela, de forma excêntrica, está implantada a casa dos homens, na qual são guardados os instrumentos musicais rituais e a indumentária cerimonial. Diante dela há um banco em que são tomadas as decisões comuns, especialmente as que digam respeito à caça, privilégio dos homens. Pelo lado inverso, a agricultura é uma atividade exclusiva das mulheres, e da qual os homens eventualmente participam na abertura de clareiras necessárias para a plantação. Em razão da distribuição de tarefas, o pátio cerimonial é reservado aos homens, que as mulheres apenas utilizam quando são convidadas. Inversamente, as mulheres circulam pela periferia das aldeias. Embora as partes das casas sejam identificadas com a anatomia masculina, são as mulheres que nelas passam a maior parte do tempo, já que os homens só se recolhem a ela para dormir e para atividades cerimoniais.

Essa descrição sumária é válida para todas as aldeias do Alto Xingu. Isso, no entanto, não quer dizer que cada aldeia não tenha mantido sua individualidade. Noutros termos, cada povo manteve características próprias no perfil das casas, na forma da casa dos homens ou na implantação do cemitério no meio do pátio.


FONTE: ARQUITETURA POPULAR BRASILEIRA, GUNTER WEIMER

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